Há uma felicidade maior que a de um cego que passa a ver, que a de um paralítico que passa a andar, que a de um cativo que se torna liberto. Sim, essa é a proposta de Jesus nos evangelhos, visto que o “levanta e anda” que Ele disse ao paralítico, foi tão somente para que os "da platéia" cressem, enquanto ao que carregava a vergonha e o peso de culpa imposto por aqueles que o viam como um pecador mais pecador (pelo fato de ter de ser carregado para ir a um lugar ou outro), bastava ouvir: “os seus pecados estão perdoados”, e nisso encontrara felicidade maior que vida. Sim, a Graça é melhor que a vida, posto que sem a Graça, a vida, ainda que repleta de mecanismos produtores de felicidade, não tem graça nenhuma, perde o brilho, não se faz suficientemente satisfatória.
Ora, para o paralítico não era uma vergonha ser paralítico, o que tornava sua condição vergonhosa era a estrutura social na qual estava inserido, eram as zombarias das crianças ensinadas por seus pais a vê-lo como um maldito, esquecido de Deus. Era a impossibilidade de alcançar perdão da parte de Deus, visto que não devia ter condições financeiras para comprar o perdão que se vendia nos templos. Isto posto, imaginava-se então, que somente um milagre poderia apagar a vergonha daquele homem, somente se ele passasse a andar, arrumasse um emprego e com seu salário pagasse um sacrifício no templo, pela mediação dos sacerdotes, receberia então o seu perdão. O Filho do Homem, no entanto, tem poder para operar milagres, mas ainda mais, o maior milagre de todos, o que é impossível aos homens, mas possível a Deus, o de salvar a alma, de perdoar os pecados. Talvez a ciência se ocupe de reverter as outrora irreversíveis condições humanas, fazendo paralíticos recuperarem movimentos, cegos tornarem a enxergar, medicando as doenças psíquicas, antes tidas como possessões demoníacas, mas perdoar pecados é coisa que só Deus faz. Nisso reside a felicidade maior que a vida, e daí mesmo nasce um caminho de felicidade elevada acima das alegrias que se pode sentir nesse corpo.
É o que o Mestre propõe ao proferir suas bem-aventuranças. Rodeado por ex-cegos, ex-paralíticos, ex-endemoninhados, Ele começa dizendo-lhes uma lista daqueles que são “mais que felizes”. Mais felizes que os que tiveram sua condição de tristeza transformada, cujo lamento tornou-se júbilo, cujo corpo deixou de ser dominado por espíritos malignos, Ele diz, são os pobres, os que choram, os mansos, os que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os limpos de coração, os pacificadores, os perseguidos por causa da justiça e pelo nome dEle. Ele está dizendo que a maior felicidade não reside no fato de sermos “ex-alguma coisa” e sim em acolher no coração o Reino de Deus, tendo-o como preciosíssimo para a sua existência. Isto de tal maneira que viver aqui não seja em busca do aplauso dos homens, nem das fortunas, nem se gloriando em suas próprias obras, mas gloriando-se nEle, como um mendigo que exulta em gratidão ao que lhe estende a mão em ajuda; que viver aqui seja em lamento pela condição desse mundo caído, cônscio da infinita distância que há entre aquilo que somos e o que deveríamos ser; que viver aqui seja lançando a Deus o direito de vingança, de tal modo que o prejuízo vivido não seja compensado com o ódio; que se tenha fome e sede por equidade, pela verdade; que a misericórdia brote no coração do que compreende-se necessitado de receber a mesma misericórdia da parte de Deus; que o coração não carregue as máculas do ódio, da condenação; que façamos paz e não guerra; que as perseguições não nos façam esmorecer no propósito de tornar reais todas as bem-aventuranças anteriores; que a perseguição por parte das trevas seja razão de alegria, pois apenas nos mostram que estamos no correto caminho.
Mas quero alertar que o contrário disso é também possível. Pois se há como ser mais que feliz, há também como ser mais que infeliz. Sim, há sempre como ir mais fundo que o fundo do poço. Há uma desgraça maior que qualquer sofrimento. Há a possibilidade de se ter saúde, riqueza, autonomia, e ainda assim viver mais infeliz que um pobre escravo doente. Nesse caso, se lermos as bem-aventuranças ao avesso, encontraremos a receita para a infelicidade mais profunda, e, pasmem, tem muita gente que segue essa lista à risca.
E aí está ela, a receita para uma vida de infelicidade profunda: Se pense agradável a Deus por si mesmo, ame os aplausos dos homens e as riquezas deste mundo, viva sempre uma vida estética, maquiando-se para receber os elogios dos homens; aliene-se de tudo o que causa dor na alma, vista a mais sólida armadura da indiferença, de modo que não derrame uma lágrima sequer por coisa alguma, sim, preserve sua vida com tudo o que puder; viva a retribuir o mal com o mal; ame a mentira e o engano, desprezando tudo que se possa chamar de justo; não se veja necessitado de perdão algum, e assim torne-se, portanto, livre da responsabilidade de aceitar a imperfeição de teu próximo, sim, se pense perfeito, encha-se de tal arrogância e presunção; aceite como naturais as máculas em seu coração; tenha sempre o desejo de oprimir e dominar sobre outrem; não opte pela justiça, antes, preserve sempre a si mesmo (cabe dizer isso novamente); e por fim, assuma seu lugar em meio à multidão dos que zombam dos profetas e não lhes dão ouvidos, prepare sua melhor pedra e arremesse no meio da testa de alguém que fala segundo a verdade. Sim, siga essa lista e seja “mais que infeliz” em sua existência ou considere tudo o que Jesus falou, crendo, sendo e assim crescendo na Graça e no conhecimento de Deus, desfrutando daquilo que seja a mais intensa forma de ser feliz.
Por mais um dos que sabem que há uma felicidade maior que tudo na vida.
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